Para quem, como eu, durante a maior parte da sua vida conheceu o incómodo, e algumas vezes o
medo fundado, de na Europa atraves­sar frontei­ras, o passar por elas sem guardas nem controlos é ao
mesmo tempo, e curiosamente, motivo de júbilo e ocasião de desconforto.
          Por certo, tal como ela aspira, a Europa poderá vir a tornar-se una e unida, aberta a todos, mas
por enquanto é ainda uma união de dis­cordâncias e interesses desequi­librados, forças que puxam em
direcções que, ora são opostas, ora desencon­tradas.
           Nela, pois, ao atravessar hoje as fronteiras que antigamen­te a dividiam, o primeiro pensamento
que me ocorre é de que só o posso fazer com tanta facilidade porque em parte nenhuma procuro trabalho,
em parte nenhuma necessito de me estabelecer, e as economias que tenho no banco garantem
que não serei estorvo para ninguém.
           Situação idêntica é a dos cerca de doze mil holandeses que, gozando uma vida de conforto,
actualmente residem em Portugal . Porém, se um número igual de compatriotas meus, querendo viver
de imediato o sonho europeu, pretendesse estabele­cer-se na Holanda para, à custa de trabalho, prepararem
também um futuro con­fortável, encontrariam hermeticamente fechadas as mesmas fronteiras que,
sem entraves, se abrem para os abastados.
          Bem sei que nada é tão simples como eu desejaria que fosse. A economia tem os seus dogmas,
a política tem as suas leis, a burocracia as suas artimanhas. E devo igualmente conceder que não é de
um dia para o outro que se podem construir os alicerces de uma União Europeia sólida bastante para
suportar, sem abalo, os embates das ambições dos países que nela são ricos, da voracidade dos países
que nela são pobres, do nacionalis­mo de uns, da corrupção de outros, das forças que se lhe opõem de
fora e daquelas que a minam por dentro.
          Sem dúvida foram dados passos largos, como se constata na cooperação científica, na dinamização
dos mercados, das finanças, na melhoria dos transportes e das comunicações. O mesmo é válido
para a cultura - tratada agora como mercadoria! - que vai sendo espalhada por um número crescente
de "consumidores". E se é muito o que dentro e fora da União Europeia me preocupa, não vejo razões
para temer que ela concorra para que o meu país perca a sua identidade ou que a minha língua venha a
ser "afogada" por estrangeirismos, pois ao longo de quase nove séculos uma e outra provaram ser
capazes de resistir em circunstâncias mais desfa­voráveis a ameaças mais sérias. Aliás, não raras vezes
se confunde perda com evolução, julga-se que desaparece aquilo que simples­mente se transforma.
          Simples cidadão, a minha capacidade de análise económica e social da Europa é forçosamente
limitada. Qualquer eurodeputa­do rebaterá sem esforço as con­clusões a que chego, baseando-se em
estudos e estatísti­cas, ou acenando com argumentos sobre os objectivos que, quanto mais se aproximam
do ideal, mais tempo necessitam para serem alcança­dos.
          Por outro lado, não é menos verdade que a Europa que hoje temos vai descartando alguns dos
ideais com que nos acenaram os seus fundadores. Mas dado que de modo geral a memória colectiva é
provadamente curta, talvez seja essa a verdadei­ra função dos ideais económi­cos e políticos: o servirem
de chamariz. Todavia, para quem nele atenta com interesse, o desenvolvimento europeu parece processar-se
com desigualda­des de mau agouro.
          A longa ditadura fascista, uma custosa guerra colonial e o desequilíbrio causado pelo retorno da
democracia em 1974, tinham deixado Portugal perto da ruína quando em 1986 ingressou na Comunidade
Económica Europeia. O seu orçamento oscilava então nos limites do de um país do terceiro-mundo,
mas passados onze anos nota-se que, do ponto de vista material, as felizes conse­quências desse ingres-
so só encontram paralelo nas do período áureo dos Descobri­mentos, quando Portugal se tornou grande
potência.
          Ao ouro e às especia­rias de então, substituem-se hoje os subsídios comunitári­os. O país trans-
formou-se num enorme estaleiro e Lisboa, como tradicional­mente, chama a si a parte leonina dos
benefícios e dos projectos. É, contudo, inegável que um pouco por toda a parte se vai melhorando a
infraestrutura das comuni­cações, que aqui e ali surgem bairros, pontes, se constrói e se renova.
          Porém, não é apenas sobre a espectacular entrada de grandes capitais e a realização de
melhoramentos que se podem traçar paralelos com o Portugal do século dezasseis. Incómodas, senão
perturban­tes, são as similitudes sociais e políticas entre o país actual e o do passado.
          As especiarias e o ouro eram nesse tempo, como os subsídios o são agora, a principal fonte de
receita do país. Fontes aleatórias, por não dependerem de um esforço de produção ou de um planeamento,
mas de situações circunstanciais e, em ambos os casos, sujeitas a influências e interesses que de longe
excediam, e excedem, os de Portugal como nação.
          Evidentemente que a União Europeia quer ser, pelo menos em teoria, o amplo regaço maternal
que acolhe os países, sem fazer distinção dos meios nem da importância de cada um. Na prática, todavia,
e mau grado os processos democráticos, constata-se uma dolorosa diferença entre o tratamento de favor
reservado à riqueza de uns e as condicionantes postas à penosa situação económica dos outros.
          Poder-se-á argumentar que tanto o favoritismo como as condicio­nantes não são fruto de qualquer
má vontade, mas simples consequência da aplicação das leis económicas que tudo regem. E que a burocracia
não funciona segundo o bom senso, mas de acordo com regras que, a priori , não têm como finalidade o
bem comum. Mas são sobretudo as consequências dessa "despersonalização" do poder que me tornam
céptico quanto à posição do meu país dentro da União Europeia.
          Não duvido de que a torneira dos subsídios continu­ará aberta, pelo menos durante algum tempo, e
que daí ocorrerão benefícios. Todavia, se considero a evolução de Portugal durante a última década, logo
a pergunta se põe: benefícios para quem? E a resposta é a mesma que se dava no século dezasseis: benefíci­os
para os detentores do poder. Nesse tempo a casa real e a nobreza­, hoje os políticos, os burocratas e a burguesia.
          Não se veja neste desabafo uma qualquer nostalgia saudosis­ta, dessas que pintam de lindas cores o
passado e ilustram o presente com sombras negras. Bem ao contrário. Desde 1986 as condições económicas
das classes menos favorecidas certamente melhoraram em Portugal. Essa melhoria, porém, só aparece como
tal quando comparada à situação desastrosa em que o país anteriormen­te se encontrava, e torna-se diminuta
quando medida pela escala europeia. Actualmente, o salário que um jornaleiro português rece­be por dia de
trabalho, em pouco excede o que é pago por hora a um operário da Europa rica.
          Desde o século dezasseis, contudo, nunca em Portugal se viu semelhante ostentação do luxo. Mas
embora o parque automóvel do país tenha aumentado de trinta porcento em quatro anos, esse "progres­so"
não consegue eliminar a realidade de que demorará muito antes que as carroças e os burros continuem a ser
o único meio de transporte de muitos.
          As pensões de velhice, de invalidez, e os subsídios de desemprego, são em Portugal uma migalha,
enquanto burocratas e políticos não escondem o receberem - dentro da legalidade - às três e quatro chorudas
pensões de reforma. Os cuidados médicos são largamente insuficientes, o nível do ensino assustador, a pobreza
uma constante. Em certos distritos de Trás-os-Montes e do Alentejo o despovoamento ultrapassa os vinte e cinco porcento. As aldeias vão sendo abandonadas e em proporção idêntica aumentam os bairros de lata em torno das
cidades. Com um desleixo total pelas conse­quências sociais e os irreparáveis danos causados ao meio ambiente,
os campos de lavoura foram transformados em gigantescas plantações de eucalip­tos que alimentam as fábricas
de celulose. E àqueles que tomaram essas medidas, pouco interes­sará saber que as vagas de suicídios entre os
aldeãos do Alentejo são hoje endémicas e que o desgaste causado pelos eucalip­tos num solo já de si pobre, resultará numa ameaça concreta de desertificação.

Historiadores e economistas dirão que desde o começo do mundo o bem-estar de uns infalivelmente acarreta o
mal-estar de outros. Mas se é certo que a União Europeia não foi criada com a finalidade de desarraigar de vez
a pobreza no continente, não é menos válido afirmar que nalguns dos seus países cada dia se torna mais gritante a diferença entre a miséria de uns e a opulência doutros, entre o conforto dos ricos e o desespero dos necessitados.
          Cabe a culpa disso a Bruxelas? Talvez não. Cabe a culpa então aos governos dos países?
Talvez sim.
          Também se poderá dizer que não é questão de assacar culpas. Que de momento nos achamos
em situação transitória. Que a verdadeira, a boa, a perfeita União Europeia forçosamente demorará muitas
décadas a realizar. Que o progresso de amanhã compensará largamente os sacrifícios que se pedem hoje.
Que devemos atentar menos nas deficiências e nos obstáculos, e pôr os olhos no futuro risonho que, ricos
ou pobres, é nossa obrigação construirmos juntos.
          Ao fim e ao cabo, na vida de cada um de nós, como na União Europeia ou nos países singula­res
que a formam, a realidade talvez tenha de ser assim. Com momentos maus e momentos bons, pobretanas
e nababos, desilusões e esperanças. Pessoalmente, o meu sonho europeu era como cabe nas visões: repleto
de belas imagens de solidariedade, bem-estar, alegria, progresso, bandeiras desfraldadas, pão partilhado.
Só que, à semelhança doutros sonhos que tive, também esse ameaça esvanecer, deixando-me rodeado de
ilusões moribundas e esperanças mal cumpridas. Felizmente, por entre estas últimas, fura de vez em quando
um raio de sol.

          

J. Rentes de Carvalho